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cartas para Bento, por Júlia Lyra

Conheci a Júlia através do Lucca, nos encontramos ano passado em sua casa em Lisboa, quando Bento já estava quase pra nascer. Hoje, nesse dia das mães, tenho a honra de compartilhar os textos dela, que incluem relatos sinceros sobre a experiência de maternar: dúvidas, anseios, alegrias, surpresas, além de registros e recados cheios de afeto para seu filho. Escrever para não esquecer, e escrever para o futuro. Júlia, obrigada por compartilhar o que sente com tanta sensibilidade e candura. Feliz dia das mães para nossas leitoras queridas!

-- cartas para Bento
Quando você ainda se formava fisicamente em mim, eu tentava formar em mim a ideia de que você já estava ali e logo mais estaria aqui. Tentava conceber uma imagem de você, do seu rosto, do seu jeito ou de como seria a vida com a sua chegada, buscando de alguma maneira dar forma a esse acontecimento que tinha lugar dentro de mim. Era difícil acreditar no que vivia, processar as mudanças e ainda me preparar para você. Eu nunca fui boa com registros em geral, mas no impulso comecei a tentar conversar com você em um caderno velho que achei em casa. Hoje, dez meses depois da sua chegada, me vejo e te vejo em cada palavra, em cada momento distinto, e apesar de ser ainda muito pouco perto de tudo que já vivemos, me permite enxergar como temos aprendido juntos a re-existir no mundo, eu mãe e você Bento.

um dia antes:
Acordei hoje, um domingo, com cólicas leves. Dizem que pode ser o primeiro sinal dos pródromos ou do próprio trabalho de parto, que pode perdurar por dias. É maluco pensar que qualquer dia pode ser o último dia das nossas vidas sem você. Independente do que isso signifique, em breve você chegará e passaremos juntos por essa travessia que te trará ao mundo e nos tornará, pra sempre, mãe e filho. Eu poderia te dizer várias coisas agora, mas a verdade é que está sendo um dia de domingo comum – seu pai jogando, eu no quarto e vovó fazendo o almoço – que poderá se tornar o dia mais importante de nossas vidas.

dia 6:
Seis dias atrás você chegou ao mundo. Eram 19:24h quando te peguei no colo pela primeira vez. Não conseguia acreditar que depois de meses de espera e 24h de trabalho de parto, estava ali olhando pra você. Nada me preparou para viver aquilo e tudo o que viria a seguir e qualquer coisa que eu escreva vai parecer exagero. Olhava pra cada detalhe do seu corpo tentando eternizar aquilo que via e sentia, tentando assimilar aquele ser tão perfeito em cada característica, tentando processar aquele amor que nascia com o seu nascimento. Com você, nasceram também os medos de uma mãe recém-nascida e nasceu, sobretudo, um amor incondicional que ainda não sei administrar. E que alegria enorme é poder te ver existir em cada detalhe, te ver crescer, te cuidar… dizem que você precisa de mim, mas sou eu que preciso de você. Bem-vindo ao mundo, filho.

dia 14:
Hoje você completa duas semanas de vida. Dias atrás eu não fazia ideia de como sua existência iria me transformar tão intensamente. Choro constantemente porque te amar assim me tira o chão e me preenche de medo, muito medo. Os primeiros dez dias foram os mais desafiadores da minha vida e aos poucos venho pegando um pouco de fôlego, mas ainda me sinto perdida nessa jornada de existir após a sua chegada. Parece que estou longe de mim, perdida no horizonte, ainda que imersa em uma felicidade abundante que é te ter na minha vida. Vivo sentimentos antagônicos em frações de segundos. Sinto ciúmes de você por te sentir tão meu, por querer tanto ser teu colo e te proteger do mundo, mas acho que aos poucos vamos nos encontrando em nós, cada um na sua individualidade. Por enquanto, ainda somos juntos, você sendo uma parte de mim fora de mim e eu sendo, pra você, você mesmo. Não sabemos ainda existir sem ser assim, coladinhos, e quero conseguir aproveitar a delícia de te ter tão perto. Você, tão pequenino, ocupa esse lugar tão imenso em mim que custo acreditar que te mereço e, por isso, me culpo por cada detalhe que sinto falhar mesmo tentando com todo o meu ser te dar o meu melhor. Enquanto aprendo a ser mãe, te observo lentamente para registrar o sentimento dessa fase e para que, na confusão de te cuidar, eu não esqueça de como foi te descobrir aos poucos.

mês 5:
Hoje é o último dia do ano que você nasceu. Nesse ano, você aprendeu a sorrir, a fazer bolhinhas com a boca, a pegar objetos com a mão, aprendeu a gargalhar, produziu as primeiras lágrimas, balbuciou os primeiros sons, viajou de avião e de carro, conheceu a praia… são apenas algumas das incontáveis primeiras vezes que você viveu e ainda vai vivenciar. Me sinto privilegiada pela oportunidade de presenciar tudo isso de perto, de ter sido colo, alimento, companhia, carinho e segurança pra você. Hoje, depois de algum tempo, consegui chorar. Chorei de alegria ao visualizar sua vida, ao ver beleza nos momentos que vivemos e ainda vamos viver juntos. Independente da data, tem coisa que não posso me esquecer. Preciso lembrar de você, me lembrar de nós, me lembrar, por exemplo, do seu sorriso de um único dente, do seu jeito de me acariciar enquanto mama, ou ainda do som da sua gargalhada e da sua carinha amassada, assanhada e sorridente ao acordar. Não posso esquecer dos barulhinhos que você emite quando acorda naturalmente ou dos seus gritinhos agudos de empolgação. Não posso esquecer nada disso porque você está e sempre estará aprendendo a existir, a ser você no mundo e cada fase será única em si. Não quero esquecer de nenhuma delas.

mês 8:
Não fazia ideia antes de ser mãe do que um bebê é capaz de fazer, mas me surpreendo com o avanço das suas habilidades, sobretudo com a facilidade com que manuseia os objetos e aprende novas formas de usar o próprio corpo. Acho fascinante a sua curiosidade com o mundo, seu jeito de observar atentamente cada ambiente procurando algo novo e sua capacidade criativa de explorar uma mesma coisa de formas diferentes. Me deparo quase sempre com a ideia que você ainda está conhecendo o mundo e as coisas, formando suas primeiras concepções de tudo, e deve ser por isso que tem pressa de andar. Diferente de antes, que recebia passivo os comandos, agora já demonstra suas vontades, preferências, o que gosta ou o que rejeita. Não tenho conseguido te escrever como gostaria, pois como deve imaginar, são muitas as demandas do dia-a-dia e o tempo disponível para mim é curto, mas o fato é que tem sido cada dia mais leve e divertido à medida em que vamos, eu e você, nos tornando mais autônomos e confiantes um no outro. Vamos, aos poucos, nos acostumando a sermos também sós, apesar de sermos sempre juntos, pra sempre.

mês 9:
Hoje você engatinhou pela primeira vez de um jeito bem desengonçado. Nesses momentos, me deparo com o passar do tempo, sentindo nas suas novas descobertas e aprendizados o seu crescimento. Você vai mudando e eu vou observando os detalhes desse movimento, da sua vida acontecendo, da sua personalidade se formando, do seu rosto mudando… para mim, é tudo tão rápido e demorado. Como dizem, “os dias são longos e os anos são curtos”. Claro que você continua dando bastante trabalho, afinal crescer e descobrir o mundo deve ser empolgante, né filho? A mãe te entende, mesmo que nem sempre transpareça. É que são tantas coisas que eu também tô aprendendo, apesar de talvez você achar que eu já sei de tudo. Tenho aprendido que os dias agora tem um tempo diferente, próprio de você, com um relógio que muda de acordo com o seu desejo. Há dias e horários mais longos, a depender se você está feliz, cansado, agitado… quando seus dias estão difíceis, difícil é também pra mim lidar com sua insatisfação. No meu anseio de te ver bem, ainda estou aprendendo a acolher suas dores sem doer tanto em mim. É difícil e dói, mas acompanhar você crescer é lindo demais. É que você é parte de mim, filho, e que bom que escolhi viver o difícil. Já não sou mais sem você, já não sou mais sem ser sua mãe… E enquanto terminava de escrever, você acordou. Hora de voltar pra você.

Aquarela e desenho de @clairesahara

A vida com gatos

Sabrina me escreveu contando que ela e Alex estão considerando adotar um gato, e pedindo dicas sobre o trabalho requerido e as responsabilidades exigidas. Decidi escrever um texto focando em um ponto de atenção com o qual ainda não me acostumei por completo e que talvez não seja tão bem disseminado. O ponto é: pra cuidar de gatos você precisa ter (ou desenvolver -na marra-) uma espécie de desapego material misturado com uma constante frustração de ter coisas destruídas.

As suas roupas ficarão cheias de pelos, é fato. Com eventuais furos: não menospreze as garras, ainda mais em momentos de amor, colo e carinho. Elas irão, inesperadamente, puxar um fio de linho daquele tricô amado, ou fazer um furo na camiseta de algodão preferida. Fique atenta, Sabrina!

Na modalidade casa, os gatos serão um fator crucial e limitante para a escolha da decoração. Vasos, se estiverem ao alcance, serão derrubados na primeira oportunidade. Esse é o hobby. Vão tentar derrubar tudo que conseguirem de qualquer e toda superfície. Atente-se também aos cabos e fios, que serão destruídos. Pense no acesso do gato ao quarto: tão gostoso dormir com um gatinho, tão horrível a roupa de cama cheia de pelo!

A cozinha com gatos pra mim constitui um dos maiores problemas. Sobem na pia, querem cheirar tudo e gostam de assistir a gente de perto. Muito curiosos. Uma vez Jorginho quis ver a Bialleti que estava no fogo e queimou o bigode (derreteu e ele só ficou com a metade). Encare a situação, você ocasionalmente terá pelos na sua louça e consequentemente, na sua comida.

Isso tudo me traz à conclusão desse texto ou o desafio acima de todos os outros: como educar gatos com a inexistência de uma linguagem comum entre vocês? Você pode tentar explicar, puxar levemente a pele do pescoço (eu tenho dó), mudar a entonação da voz e pode tentar tirá-lo de cima da mesa mil vezes: não vai resolver. Você aprende a ACEITAR. Você talvez aprenda desprendimento. Ou você provavelmente se submeta ao papel de pobre servo do grande monarca absolutista que habita a sua casa. Vale a pena!


Foto: Chomsky e Jorginho-Duas monarquias em uma só casa! E eu escrava de ambas.

Dicas extra:
• Não gaste fortuna com brinquedos, eles se divertirão muito mais com tampinha de cerveja e aquele plástico que fecha a embalagem de pão.
Artigo interessante sobre gatos
• Um joguinho muito maneiro que Dani codou essa semana: "Chomsky vs o aspirador do mal". Meu score máximo foi 7 (péssimo), e o de vocês?

A civilização é uma ajuda comunitária

Vi essa postagem no LinkedIn pela antropóloga Diana Brasilis e achei lindo e extraordinário essa mensagem estar naquele canal e claro, deu vontade de compartilhar aqui também. Segue:

"Uma estudante perguntou uma vez à antropóloga Margaret Mead qual considerava o primeiro sinal de civilização em uma cultura. A estudante esperava que a antropóloga falasse de anzóis, bacias de barro ou pedras para amolar, mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga é a prova de uma pessoa com um fêmur quebrado e curado.

Mead explicou que no resto do reino animal, se você quebrar a perna, você morre. Você não pode fugir do perigo, ir para o rio beber água ou caçar para se alimentar. Você se torna carne fresca para predadores.

Nenhum animal sobrevive a uma perna quebrada o tempo suficiente para que o osso cure. Um fêmur quebrado que se curou é a prova de que alguém tirou o tempo para ficar com o que caiu, curou a lesão, colocou a pessoa em segurança e cuidou dele até que ele se recupere.

"Ajudar alguém a passar pela dificuldade é o ponto de partida da civilização", explicou Mead. A civilização é uma ajuda comunitária."

Tem Gosto de Trufa?

Foi o que perguntei no smart shop aqui em Amsterdam no momento em que comprávamos os cogumelos, fazendo o atendente rir da minha cara. Uma amiga muito querida passou pela cidade sexta feira e já de última hora, depois de jantarmos juntos, eu, ela e Dani, tivemos a ideia. Eu não queria, tinha medo -de ter alucinações, perder o controle, passar mal, vomitar, etc. Dani queria muito há um tempo. Essa amiga já havia experimentado antes e gostado.

Na loja havia um cardápio de 1 a 5 variando conforme a intensidade da experiência procurada. Compramos o número 1 para mim e o número 3 para eles. As embalagens são realmente bem feitas, como notaram meus amigos pra quem mandei fotos. Comi só a metade da minha dose e até uns 40 minutos depois, já no parque, não estava sentindo nada. Eis que de repente, em um estalo, minha amiga começou a destoar da paisagem no meu campo de visão, em uma resolução 4K, uma fotografia dreamy muito bem editada, e em movimento.

Senti medo de novo, medo de como eu me sentiria, como meu corpo processaria aquele fungo, mas sobretudo medo de morrer fazendo alguma coisa "errada", que desapontasse as pessoas que se importam comigo. Depois percebi que não ia morrer, mas que morrer parece solitário, e me entreguei às sensações que chegavam até mim.

Era gostoso ver o céu em um roxo brilhante e em movimento, a grama funda e cintilante, parecendo uma capa de CD. Olhar pro lado e ver a Sabrina tão tranquila e feliz, o Dani todo deslumbrado e tagarela. Vontade de rir e de abraçá-los, pensando no enorme amor que sinto pelos dois, ao som de Palace.

Era bom só existir deitada no parque, respirar enquanto admirava a paisagem, completamente presente naquele momento. Na volta pra casa senti saudades dos meus pais. Quando relembro a experiência como um todo, penso em "Lucy in the Sky with Diamonds" dos Beatles. Muito clichê?

"Picture yourself in a boat on a river;
With tangerine trees and marmalade skies;
Somebody calls you, you answer quite slowly;
A girl with kaleidoscope eyes....
Cellophane flowers of yellow and green";

e de uma foto que tirei no final de 2019 no Flower Dome de Cingapura:

Comer cogumelo foi para mim o contrário de assustador. Mas que bom que comi só metade da dose mais fraca do cardápio. Gosto da minha prudência. Talvez essa seja a dica para os assustados como eu. Definitivamente não é algo para fazer todo dia, mas fica a memória de um sonho bom compartilhado com algumas das pessoas que mais amo e confio no mundo. E vocês, já provaram ou gostariam de provar?

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