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"Nós & Eles" de Bahiyyih Nakhjavani, por Lara Terzian

Lara é internacionalista -ambas fizemos Unesp Franca-, leitora ávida e organizada, e uma pessoa que eu quero conhecer melhor e convidar para um café! Escreveu, muito generosamente para o blog, essa resenha de um livro que a atravessou, e que certamente interessará alguns de nossos leitores. Muitíssimo obrigada por compartilhar , Lara!

O que nos une como pátria? E o que nos une fora da nossa própria pátria? Qual a comunhão entre "Nós e Eles", e qual é a entre nós mesmos?

O livro iraniano da escritora Bahiyyih Nakhjavani, nos conta através da história da família de Bibijan um retrato da diáspora do Irã, marcada pela revolução islâmica de 1979. Bibijan, a anciã da família, deixa enfim o Irã para encontrar uma de suas filhas nos Estados Unidos, enquanto sua outra filha, uma artista instalada em Paris tenta fazer as pazes com a mãe, com a pátria deixada para trás e com seu próprio passado. A saída é feita após muitos anos e com o coração pesado com a esperança desbotada de encontrar o filho mais novo - que sumiu em combate nas montanhas curdas.

O livro alterna entre a narrativa da família e de capítulos narrados por outros iranianos, que também saíram do país para se instalaram em diversas partes do mundo. Alguns personagens se interligam à história principal, mas acima disso, o "ser" persa é o fio condutor do livro. Como pertencer em outra cultura tão distinta e por vezes tão hostil ao diferente?

A autora utiliza da polifonia de vozes, e de vidas, para chegar ao denominador comum "Nós". Diversos, procurando existir, pertencer, mas dividindo a herança da pátria.

"Eles nos respeitam, e nós a eles, porque a morte é o nosso fim comum e a dor nosso direito humano universal."

Três livros por Lud

Gabi me pediu há tempos (não funciono sem prazo, rs) a recomendação de três livros para este blog. A tarefa é mais difícil do que parece - sou mais uma vítima das dificuldades de manter viva a ávida leitora adolescente que já fui e tenho percebido a memória já não tão boa de uns tempos pra cá (Covid? Telas demais? Pós-30? Todas as anteriores?). De qualquer forma, aí estão:

Disclaimer: se o leitor espera por um quentinho no coração nessas recomendações, sinto muito. Essas indicações vão balançá-lo, sim, mas para o bem e para o mal (assim como a vida - tão bem reproduzida pela literatura - faz), necessariamente.

"Estela sem Deus", de Jeferson Tenório

Motivo da escolha: Gabi me apresentou Elena Ferrante, a autora da tetralogia napolitana, que protege sua identidade e é capaz de descrever a complexidade dos sentimentos e relações de e entre mulheres de forma fidedigna (e invejável).

Se, no caso dela, perdeu força a teoria de que poderia ser um homem por trás do pseudônimo, Tenório, em "Estela sem Deus", descreve em primeira pessoa uma adolescente e as passagens que marcam esse período com uma profundidade que poderia muito bem ser usada como exemplo dessa possibilidade.

Estela é uma menina negra, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que faz uma passagem nada doce, como não costuma ser, da infância para a adolescência. O processo já permeado por dúvidas, vergonha e violências é agravado pelas condições sociais de sua família. O período é marcado ainda pela mudança para o Rio de Janeiro junto do irmão.

A herança racista e misógina que reside na expectativa de seu silêncio, porém, esbarra no processo autodescobrimento: para além de ousar conhecer quem é, Estela quer ser filósofa. A relação com a mãe, tia, amiga... a falta de uma com Deus... a distância (física e/ou afetiva) do pai, do irmão, do namorado. Tudo isso entrelaçado com o difícil e solitário processo de aprender a ser quem se é (que nunca acaba) me fez guardar esse livro na minha diminuta estante de lembranças e dicas de leitura.


(O Tenório tem outros livros extremamente especiais, não pare nesse, se puder)
Capa por Alceu Chiesorin Nunes

"Eva", de Nara Vidal

Motivo da escolha: Qual o tamanho de uma mãe na vida de um filho? Qual o espaço que suas expectativas preenchem e por quanto tempo? E se for uma filha?

Se você ousou passar, em algum momento, por algum mergulho interno para pensar no impacto dessas questões em si mesmo já sabe que essas são águas intranquilas. Neste romance, Vidal nos joga no olho do maremoto. Eva é um relato de reinteradas e mal resolvidos conflitos desta e de outras relações (como reflexo?).

Se você já fez ou faz análise vai reconhecer a sensação: aquele desconforto de atingir um ponto de inflexão perto do fim da sessão e sair com aquele nó para ir desatando bem aos pouquinhos. Um incômodo que fica e por vezes é esquecido nas amenidades do dia a dia. Neste livro, porém, ele fica e ganha novas camadas a cada trecho. "Eva" é uma dor crônica com pontos de agudez muito bem escrita.

Capa: Cristina Gu | Flávia Bomfim

"Meio Sol Amarelo", de Chimamanda Ngozi Adichie

Motivo da escolha: "Meio Sol Amarelo" não é uma leitura recente, mas mesmo sendo avessa a cometer opiniões na internet, me fez escrever à época sobre ela.

Os outros dois livros que listei trazem condições, e relações, essencialmente humanas em todas as suas complexidades. Mas e quando o conflito é coletivo? Qual o impacto de uma guerra? Permitam-me repetir aqui minha percepção pós-leitura, feita em 2016:

"Americanah é maravilhoso. Hibisco Roxo conversa tanto com a realidade brasileira que assusta. Mas, para mim, é em Meio Sol Amarelo que Chimamanda mostra o que faz de melhor: é humanidade do início ao fim com tudo de incrível e de horroroso que isso pode significar.

O livro narra a Guerra Nigéria-Biafra (67-70) pelos olhos de Olanna, uma socióloga educada na Europa que volta a sua terra natal para construir sua vida e de Ugwu, empregado na casa onde Olanna vive com Odenigbo, um professor universitário idealista.

A força das imagens construídas, o arrastar da dor sem o desandar do texto, a fragilidade e a reconstrução das relações em meio ao caos, a fé. Em tempos de certezas absolutas, é na dúvida que reside a "dor e a delícia", a complexidade e fragilidade que andam de mãos dadas dentro de nós. Chimamanda é mais necessária que nunca "

Vez ou outra releio esse relato e tenho um pedacinho do sentimento que esse livro me deixou. Me apego demais às palavras pra me permitir chamá-lo de favorito (há tanto por ler), mas acho difícil que eu faça alguma lista como esta ousando deixá-lo de fora.

Com o perdão da reprodução da minha resenha de Facebook neste último encerro aqui minhas recomendações. Conta pra gente se ler algum?

Chimamanda além de tudo é estilosa demais.

Grandes escritores, Temas profundos e Coisas bem-feitas

Dudu me mandou esse texto em uma terça feira a noite e antes de abrir já imaginei a grandeza, sentindo um "putz, lá vem coisa cabeçuda", no sentido desafiador mesmo.

Depois de ler pela primeira vez, suei. Pensei comigo: "tenho nem roupa pra subir isso no blog e misturar com meus textos bobinhos, amenidades e looks do dia". De qualquer forma, sugiro que esse texto não seja lido apenas uma vez. No meu caso, lerda que sou, foram repetidas vezes até que fosse bem digerido, o que também me deu fôlego e coragem para escrever uma introdução razoavelmente adequada para ele (será que ficou mesmo?).

A verdade é que Dudu não faz nada malfeito quiçá mediano. Tudo que põe no mundo é de completa distinção. Desde criança é assim. Hoje mestre em Tradução Literária pelo Trinity College, é o maior especialista em Tolkien desse Brasil (quem discorda tá errado) e dono do vocabulário mais refinado que conheço.

O tema que traz é também dos mais significativos, o sentido da vida e da morte, por Cecília Meireles, Quintana e Manuel Bandeira. Tema esse que tenho visitado recentemente também em outros conteúdos: no luto de Joan Didion (no livro "O Ano do Pensamento Mágico"), no cinema de Bergman (no filme "O Sétimo Selo" de 1957 -que inclusive acredito que Dudu irá gostar muito pois sueco) e que todos vivemos recentemente por conta da morte de Rita Lee, que pra tantos faz parte dos que tiveram um bom legado, como Dudu descreve no fim do texto. Da minha parte, só busco registrar por aqui o que estamos vivendo no momento.

Obrigada Dudu, por esse presente.


Que não fique o chão nem fique a sombra

Quando o poeta Manuel Bandeira morreu, em 1968, seu amigo e também poeta Mario Quintana escreveu uma pequena homenagem. Nela, diz sempre ter considerado "uma bênção do Destino ter sido contemporâneo e merecido a amizade de Manuel Bandeira. E, também, de Cecília Meireles, a quem nós dois queríamos tanto. Leva a ela o meu beijo, Manuel!"

Cecília Meireles já havia partido quase quatro anos antes, e Quintana ainda viveria umas três décadas. Que trio! Grandes nomes da nossa literatura encapsulados nesse singelo texto que, no fim das contas, fala sobre a Morte e sobre o que fizemos antes dela.

Os três dedicaram muitos poemas a esse assunto e, aqui e ali, podemos fisgar versinhos interessantes sobre a nossa passagem por esse chão. Cecília Meireles (mais propriamente o seu "eu-lírico") às vezes expressava uma visão que uns chamariam de "niilista". No finzinho de Paisagem Mexicana, por exemplo, uma mulher sozinha, chorando, olhava para os céus:


Talvez perguntasse aos santos:
"Por que se morre?" e sentisse
que do céu lhe perguntavam
também: "Para que se vive?"

Ora, que pergunta! Em outro poema, sem título, a poeta reforça essa ausência de propósito e se põe a conjecturar em galopantes redondilhas:

Se não houvesse saudade,
solidão nem despedida...
Se a vida inteira não fosse,
além de breve, perdida!

E, por fim, num belo poema de 1954, chamado Humildade, Cecília Meireles parece descrever a nossa própria vida, sete décadas depois, e termina com o mesmo sentimento de dúvida sobre nosso objetivo:

Tanto que fazer!
livros que não se leem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás de grades de chuva.
E os mortos em redoma de cânfora.

(E uma canção tão bela!)

Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos,
nem para quê.

De que nos serve essa raridade chamada vida, cujo desfecho é conhecido, mas cujo propósito é obscuro? Manuel Bandeira têm uma visão mais otimista, ou pelo menos é o que expressa em Consoada:

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Não sei qual foi o propósito na vida desse morituro, mas está cumprido; esse sujeito, na hora de acertar as contas com a Indesejada, estará quite com a vida.

Nas últimas estrofes do soneto Esses inquietos ventos, de Mario Quintana, escrito em 1935, mas publicado só em 1989, podemos ver o sujeito fazendo eco à ideia de que talvez não tenhamos tido um propósito na vida:

Os ventos vêm e batem-me à janela:
"A tua vida, que fizeste dela?"
E chega a morte: "Anda! Vem dormir..."

Faz tanto frio... e é tão macia a cama:
Mas toda a longa noite inda hei de ouvir
A inquieta voz do vento que me chama!

Mas não foi nem de longe a única maneira com que ele lidou com a Morte em seus poemas. Chegava até mesmo a tratá-la como velha conhecida. No seu primeiro livro, A Rua dos Cataventos (1940), os sonetos falam do tema em várias ocasiões. No de número XIX, chama a Morte de "minha doce Prometida" e diz

Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi.

Significativamente, ela volta no último poema do livro, em que o sujeito reflete sobre aquilo que quer levar da vida: madrugadas, pôr de sóis, algum luar, asas em bando e o rir das primeiras namoradas. E termina da maneira mais esperançosa possível:

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

Cecilia Meireles, Mario Quintana e Manuel Bandeira são nomes que ficaram para a posteridade. Temos visto ultimamente passar para o lado de lá uma gente que também deixou um legado, um bom legado. Quem sabe a você também esteja destinado um legado na literatura, na música, na ciência, na política. Ou talvez você prefira que se lembrem com carinho apenas das suas pequenas façanhas, dos heroísmos cotidianos — aprender línguas, dar amor, escrever cartas et cetera — até que, em algum desconhecido dia, alguém dirá seu nome pela ultimíssima vez:

E que eu desapareça, mas fique este chão varrido onde pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra

(Esse é o remate de outro poema, Eterno, do eterno Drummond, também amigo dos três outros).

Não sei para que se vive e nem em nome do que você vive, mas, no embalo e no embaraço do dia a dia, desejo muito que aproveite para urdir fios de vida no manto da morte, de modo que, quando a Indesejada chegar mesmo (daqui a muito, muito tempo, é claro), você — tranquila e seguramente — possa dizer "o meu dia foi bom, pode a noite descer".