Caos e Urbanismo
Lucca é doutorando em Planejamento Urbano, mora em Lisboa e toda vez que eu o encontro sinto uma grande alegria dentro de mim misturada com a sensação de que tudo é possível. A crônica abaixo, da qual compartilho visão, ele escreveu especialmente para o blog.
O que me resta é só um gemido - Caos e Urbanismo
O meu corpo precisa de caos. Passamos muito tempo tentando ordenar aquilo que não é ordenável. Tentamos prever e organizar a vida: que horas sair de casa, que rua andar, que rua não andar, quem encontrar, sentir, anestesiar. Gastamos uma grande quantidade de energia nesse processo. Para mim isso é completamente à toa, simplesmente não faz sentido. O mundo é caótico, viver passa por aceitar o caos e não tentar organizá-lo (é impossível), mas sim aprender a andar nele. A navegar. Fluir (para usar palavras da moda).
Saindo do âmbito pessoal e pensando nas cidades, minha experiência morando em alguns lugares na Europa tem me feito pensar na relação entre caos e urbanismo. Nas cidades nortes vejo uma tentativa de domar o caos: tudo é arrumado, limpo, ascético, para utilizar as ruas é preciso pedir autorização, para protestar é preciso pedir autorização, para sentar talvez seja preciso pedir autorização também, resumindo tenta-se ordenar a vida. Esse modelo é tomado como referência por diversos planejadores urbanos. No entanto, cada vez mais enxergo a pobreza dessa forma de organizar o mundo. Não há espaço para inovações - nada pode sair do planejado. Não há espaço para a espontaneidade, talvez nem espaço para a vida mesmo. Isso também se reflete nas formas de sociabilidade que encontramos na rua, muito mais rígidas, engessadas e determinadas por hábitos de consumo. Para mim, a cidade norte está quase morta. É uma anestesia, pode ser um simulacro de algo ou mesmo uma versão grande da Disney. Nesse contexto, acredito que é praticamente impossível produzir o novo. Como diria Ney Matogrosso, ventos do norte não movem moinhos.
A cidade sul por sua vez é o caos em definição. O trânsito, a bicicleta, o morador de rua com 10 cachorros, para não falar dos engravatados e das madames de salto alto nas calçadas irregulares, os vendedores: carregador de celular, ohhh a pipoca, brahma latão, cuidado menino, não mexe no celular na rua, vão te assaltar. Se for o rio de janeiro então temos alguns adicionais, o bueiro que explode, o cheiro de mijo quase que constante em vários lugares, os motoristas de ônibus que nunca param (o 456 então é uma lenda), as constantes enchentes, onde a cidade vira um rio de uma hora para outra, tudo isso temperado há mais de 40 graus.
Não é que não exista nenhuma ordem, o caos não é isso. Tem regras, tem organização, mas diferente da cidade norte. Na cidade sul sobra espaço para inovação, para o espontâneo e isso se aplica a diferentes campos: da política, do lazer, da economia, da vida. Todos eles sobrepostos, não é possível isolá-los. Esses lugares são para novas ocupações do espaço público, para vender, para protestar, interagir com as pessoas, para se relacionar. É uma pulsão de vida constante. Tudo está vivo. O movimento é constante. Isso para mim é fluir. Claro que isso tem a ver com as tensões sociais, as desigualdades e o sistema capitalista (que tornam as coisas muito mais competitivas - é preciso matar ou morrer todos os dias). Não é uma romantização da pobreza, mas talvez mostrar que quanto mais longe dos padrões que nos são vendidos como modelos de "civilização", mais perto estaremos de nós mesmos. Perto de nós mesmos, para mim significa entender nossas próprias necessidade e desejos, sem seguir as de narrativas da moda. Como diria Cazuza, nadando contra a corrente, só para exercitar todo o músculo que sente. E isso tem a ver com felicidade.
O caos da cidade passa pelo meu corpo e toma conta. As coisas não são tão quadradas nem definidas. Tem espaço para tudo. Isso - pelo menos para mim que tenho meu lado sangue quente - me equilibra. Eu não preciso me esforçar para criar um movimento, para sentir, para viver, porque já está tudo ali. Dado. É só botar o pezinho na rua que a magica acontece (as vezes alguém te leva o celular também). Não é preciso se anestesiar para sentir novas sensações, pelo contrario, é só mergulhar. A ideia é ser parte. E é tudo tão bonito, desde a gota de suor que escorre, as pessoas na fila do churros, o mototáxi sem capacete e a lua então. Para mim, essa é a grande beleza. Mas enquanto isso não acontece, que nos resta é só um gemido, um grito, um desabafo.