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More than this, Roma

Sábado à noite em Roma antes do jantar, com a cidade já escura mas movimentada e enérgica, escuto vindo de longe "More than this" de Roxy Music. Senti, instantaneamente, uma grande satisfação (como quando falo pra mim mesma, em pensamento, "ownn amo essa música" ainda tentando reconhecer o nome e artista). Pra mim transmite uma mistura inseparável de melancolia com alegria tímida, que quer fugir do peito mas não encontra espaço. Ainda assim, dançante.

Claramente a primeira associação é com a cena do karaokê de Lost In Translation, em que Bill Muray canta essa música de um jeito desafinado, devagar, e nem aí pra impressionar.

A falta de ansiedade e expectativas naquele momento é um deleite. Tão quanto a personagem de Scarlett Johansson dizendo, sem hesitar, que ainda não descobriu o que fazer da vida.

Deu vontade de assistir de novo o filme inteiro, com tantas nuances e delicadezas. Deu saudade de Tóquio, mas confesso que a música também combina muito com essa Roma que visitei em um fim semana, ou com essa fase atual da vida. Meio atemporal, desconfio.

Pra mim Sofia Coppola transmite e normaliza essa sensação um tanto coletiva, de que estamos perdidos na vida, o tempo todo carregando incertezas em relação às nossas escolhas, identidade, lugar no mundo, até não precisar mais carregar. E ainda traz a esperança de um lugar livre da necessidade de impressionar ou ser impressionado o tempo todo. Só viver junto, compartilhar experiências singelas, e celebrar e proteger os grandes encontros, exaltando a misteriosidade que só pode ser vista de dentro.

Pequena ponderação sobre a Árvore de Natal

Dudu escreveu esse texto para o período natalino, mas a vida atropelou e só consegui postar agora. Culpa minha. Entretanto, a postagem encaixou no 7 de janeiro desse ano, o domingo depois da Epifania, que é a data recomendada pelo Vaticano para desmontar a árvore de Natal. Olha só como estamos religiosos. Boa leitura!


No adorável texto "Como aprendi o português", o latinista e tradutor húngaro Paulo Rónai — que por causa da Guerra radicou-se no Brasil — explica que, enquanto aprendia nosso idioma, as palavras que o atrapalhavam mais eram as corriqueiras: "uma das palavras brasileiras mais difíceis de traduzir e encaixar num verso húngaro era dezembro. O [húngaro] december, etimologicamente idêntico, mas que evocava noções de gelo, neve e miséria, não poderia sugerir a nenhum leitor húngaro a imagem de um Natal carioca, tórrido e abafado".

De fato, o nosso Natal é climaticamente oposto ao europeu e, no entanto, os nossos símbolos festivos permanecem mormente europeus. Nos últimos dias, chamou-me a atenção uma campanha natalina promovida por uma empresa de sabonete que buscava abrasileirar uma tradição: em vez de um pinheiro, colocaram uma árvore que suponho ser típica daqui, e repleta de cajus, flores e vitórias-régias boiando n'água.

Sem dúvida, a intenção foi a melhor possível, mas, apesar do esforço, é impossível nativizar completamente o símbolo: não importa que espécie de árvore se use, a própria concepção e ideia de uma Árvore de Natal, com sua decoração vistosa e uma estrela encarapitada, segue sendo um símbolo tipicamente europeu, cuja invenção se atribui ao monge beneditino São Bonifácio. Também desconfio que, insensíveis aos apelos da empresa de sabonete, a maior parte dos lares católicos brasileiros continuará a montar uma árvore de aspecto bem europeu, em forma de pinheiro, mas de plástico, talvez salpicada com algodão para lembrar a neve que não temos, com fios de luzinhas piscando assíncronas e bolinhas de Natal. Evidentemente, a Árvore de Natal é só um inofensivo legado europeu: não é, por exemplo, tão importante quanto a prensa de tipos móveis, e nem de longe tão perniciosa quanto os mais infandos reflexos do colonialismo.

Lembro-me que, ao falar sobre estrangeirismos no idioma, um antigo professor de linguística disse que quando a palavra estrangeira coloca a fitinha do Senhor do Bonfim e um par de Havaianas, ela passa a ser brasileira: o mesmo acontece com a Árvore de Natal. Ela é inegavelmente europeia, mas só o fato de estar enfiada no canto de uma sala enquanto os convivas da ceia bebem cerveja e refrigerante gelados e não um wassail fervendo mostra que a Árvore de Natal já amarrou sua fitinha, está bem à vontade de Havaianas e não precisa ser repaginada, por ora.

Talvez você goste da ideia de uma árvore mais brasileira no nosso tórrido Natal. Ou, se você for como eu, é possível que não ligue muito para isso e não tenha nem sequer uma árvore de Natal montada, quer brasileira, quer europeia. Quanto à empresa, a campanha pode até encher os olhos, mas tenho quase certeza de que ninguém de lá está muito aí para isso: para eles, pouco importa que árvore você tem na sua sala, desde que compre muito sabonete no Natal.

Caos e Urbanismo

Lucca é doutorando em Planejamento Urbano, mora em Lisboa e toda vez que eu o encontro sinto uma grande alegria dentro de mim misturada com a sensação de que tudo é possível. A crônica abaixo, da qual compartilho visão, ele escreveu especialmente para o blog.

O que me resta é só um gemido - Caos e Urbanismo

O meu corpo precisa de caos. Passamos muito tempo tentando ordenar aquilo que não é ordenável. Tentamos prever e organizar a vida: que horas sair de casa, que rua andar, que rua não andar, quem encontrar, sentir, anestesiar. Gastamos uma grande quantidade de energia nesse processo. Para mim isso é completamente à toa, simplesmente não faz sentido. O mundo é caótico, viver passa por aceitar o caos e não tentar organizá-lo (é impossível), mas sim aprender a andar nele. A navegar. Fluir (para usar palavras da moda).

Saindo do âmbito pessoal e pensando nas cidades, minha experiência morando em alguns lugares na Europa tem me feito pensar na relação entre caos e urbanismo. Nas cidades nortes vejo uma tentativa de domar o caos: tudo é arrumado, limpo, ascético, para utilizar as ruas é preciso pedir autorização, para protestar é preciso pedir autorização, para sentar talvez seja preciso pedir autorização também, resumindo tenta-se ordenar a vida. Esse modelo é tomado como referência por diversos planejadores urbanos. No entanto, cada vez mais enxergo a pobreza dessa forma de organizar o mundo. Não há espaço para inovações - nada pode sair do planejado. Não há espaço para a espontaneidade, talvez nem espaço para a vida mesmo. Isso também se reflete nas formas de sociabilidade que encontramos na rua, muito mais rígidas, engessadas e determinadas por hábitos de consumo. Para mim, a cidade norte está quase morta. É uma anestesia, pode ser um simulacro de algo ou mesmo uma versão grande da Disney. Nesse contexto, acredito que é praticamente impossível produzir o novo. Como diria Ney Matogrosso, ventos do norte não movem moinhos.

A cidade sul por sua vez é o caos em definição. O trânsito, a bicicleta, o morador de rua com 10 cachorros, para não falar dos engravatados e das madames de salto alto nas calçadas irregulares, os vendedores: carregador de celular, ohhh a pipoca, brahma latão, cuidado menino, não mexe no celular na rua, vão te assaltar. Se for o rio de janeiro então temos alguns adicionais, o bueiro que explode, o cheiro de mijo quase que constante em vários lugares, os motoristas de ônibus que nunca param (o 456 então é uma lenda), as constantes enchentes, onde a cidade vira um rio de uma hora para outra, tudo isso temperado há mais de 40 graus.

Não é que não exista nenhuma ordem, o caos não é isso. Tem regras, tem organização, mas diferente da cidade norte. Na cidade sul sobra espaço para inovação, para o espontâneo e isso se aplica a diferentes campos: da política, do lazer, da economia, da vida. Todos eles sobrepostos, não é possível isolá-los. Esses lugares são para novas ocupações do espaço público, para vender, para protestar, interagir com as pessoas, para se relacionar. É uma pulsão de vida constante. Tudo está vivo. O movimento é constante. Isso para mim é fluir. Claro que isso tem a ver com as tensões sociais, as desigualdades e o sistema capitalista (que tornam as coisas muito mais competitivas - é preciso matar ou morrer todos os dias). Não é uma romantização da pobreza, mas talvez mostrar que quanto mais longe dos padrões que nos são vendidos como modelos de "civilização", mais perto estaremos de nós mesmos. Perto de nós mesmos, para mim significa entender nossas próprias necessidade e desejos, sem seguir as de narrativas da moda. Como diria Cazuza, nadando contra a corrente, só para exercitar todo o músculo que sente. E isso tem a ver com felicidade.

O caos da cidade passa pelo meu corpo e toma conta. As coisas não são tão quadradas nem definidas. Tem espaço para tudo. Isso - pelo menos para mim que tenho meu lado sangue quente - me equilibra. Eu não preciso me esforçar para criar um movimento, para sentir, para viver, porque já está tudo ali. Dado. É só botar o pezinho na rua que a magica acontece (as vezes alguém te leva o celular também). Não é preciso se anestesiar para sentir novas sensações, pelo contrario, é só mergulhar. A ideia é ser parte. E é tudo tão bonito, desde a gota de suor que escorre, as pessoas na fila do churros, o mototáxi sem capacete e a lua então. Para mim, essa é a grande beleza. Mas enquanto isso não acontece, que nos resta é só um gemido, um grito, um desabafo.